terça-feira, 26 de abril de 2011

POUCAS & BOAS - Eduardo Kruschewsky

O HOMEM DA CRUZ

- Já se foi o tempo em que circo dava dinheiro. Quem diria que os grandes nomes pisaram neste picadeiro? Agora, tudo é só tristeza, a gente tendo que viajar de cidadezinha em cidadezinha, se quiser sobreviver. E olha que já tivemos todo tipo de animal amestrado!
- Calma, Mestre Josias, ainda lhe resta um bom grupo de artistas que faz de tudo. Garanto que agora, na Semana Santa, o circo vai “bombar” de gente...
- Ah, aí, sim! O senhor precisa ver, “seu” prefeito! Nós encenamos uma Paixão de Cristo que nem em Nova Jerusalém é igual! O senhor vai ver...
E a conversa acabou ali. Na terça-feira, véspera da estréia, quando tudo parecia bem, ocorreu o desastre: O louro trapezista que fazia o papel do Cristo amanheceu com o rosto cheio de bexigas, estava de catapora. Foi um Deus nos acuda! Josias, preocupado, chamou a mulher do ator:
- Marieta, pelo amor de Deus, será que com pó de arroz nós não resolvemos o problema?
- De jeito nenhum, Mestre Josias! O homem tá mais pintado do que couro de onça... Pode tratar de arranjar outro, pois o veterinário já disse que ele tem que ficar de molho, sem pegar vento.
Foi aí que interviu a esposa do dono: - Ou, Josias, tu já reparou que aquele “mata-cachorro”, o Gustavão, tem os olhos azuis? E até que ele não é feio... Com uma boa maquiagem, a gente transforma ele num bom Jesus Cristinho...
Procurado, o “mata-cachorro”, vendo a oportunidade de ser promovido, aceitou logo, alegando que tinha dez anos arrumando e desarrumando picadeiros e, graças a isso, sabia de cor e salteado todas as falas da peça. Reunião feita com o elenco para anunciar a troca, Zeferino, companheiro de quarto do Gustavão e o personagem que beijaria os pés do Cristo na cruz, protestou:
- “Seu” Josias, o senhor desculpe! Com aquele” cabra” eu não trabalho! O desgraçado tem um chulé tão retado que quando tira o sapato não tem quem fique por perto. Eu é quem sofro toda noite, sem dormir direito, e, agora, ainda beijar aqueles pés, é dose! Affff...
- Olha aqui, Zeferino! Artista tem que fazer de tudo por amor à arte. Se o senhor não quiser, não tem problema. Bote pegar seus panos de bunda e ganhar o mundo. O caminho é por ali...
O pobre coitado, então, condicionou que só beijaria aquela nojeira no dia da estréia e aceitou a missão com asco. No dia da estréia, a mulher de Josias, penalizada, aconselhou: que Zeferino fosse à farmácia e comprasse uma solução de álcool com cânfora, santo remédio para acabar com qualquer odor. Na hora de beijar os pés, ele despejaria, disfarçadamente, a solução nos pés e, com certeza, o fedor desapareceria. O homem, agradecido e esperançoso, foi à farmácia e mandou caprichar no preparo.
Mais tarde, o circo estava lotado. O espetáculo da Paixão de Cristo transcorria perfeito. Alguns choravam, outros ficavam com um nó na garganta, com os atores dando um verdadeiro show de interpretação! Chegou a hora da crucificação e o momento do beija-pé. Tudo muito solene, mesmo no picadeiro onde o lençol, que deveria cobrir as partes íntimas do Gustavão, deixava ver quase tudo para delícia das atrizes ajoelhadas ao pé do lenho. Zeferino aproximou-se da cruz. Passou pelo grupo de centuriões perfilados que representavam o poder de Roma e quanto mais chegava perto mais o odor lhe deixava enjoado, com vontade de vomitar. Controlou-se e, contrito, ajoelhou-se. Disfarçadamente tirou o frasco da algibeira e derramou o líquido naqueles pés brancos e mal cheirosos.
Ouviu-se um urro de dor e o crucificado, esquecendo-se que estava no meio de uma peça tão importante, pulou da cruz, o lençol expondo sua nudez e correu para um centurião, do qual arrebatou uma lança, partindo em direção a Zeferino, tacando o instrumento em sua cabeça.
Foi ridículo! O drama virou pastelão, com gente rindo a valer; mulheres fingindo cobrir o rosto para não ver as partes do Gustavão; maridos indignados protestando em voz alta; uma zorra total, um caos! O pobre beijador de pés corria, desesperado, perseguido pelo homem da cruz que gritava:
- Minhas frieiras... Ai, minhas frieiras... “Seu peste”, desgraçado, “desinfeliz”, se eu te pegar, eu te mato, “seu” filho de rapariga!

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